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Compulsão alimentar: como meu controle pode levar ao descontrole?

O mês de Setembro está acabando e, junto com ele, encerramos nossa série de textos sobre Alimentação Intuitiva. No entanto, não podemos nunca esquecer a importância de discutir sobre esse assunto! A maneira de comer divulgada nos dias de hoje é um forte incentivo para a depreciação corporal e a falta de auto-estima, além de ser porta de entrada para muitos transtornos alimentares. Em contrapartida, uma alimentação menos regrada e mais sensível colabora para um dia-a-dia saudável, e para uma vida livre de culpa.

É pensando nisso que trazemos nessa semana um texto escrito pela nutricionista Nathália Petry, que esteve, dia 25/09, palestrando sobre a Alimentação Consciente e Intuitiva em um de nossos eventos em parceira com a ACAN. O artigo trata da Compulsão Alimentar, um dos muitos problemas que a Alimentação Intuitiva pode ajudar a resolver.

 


Compulsão alimentar: como meu controle pode levar ao descontrole?

 

‘Descontrolada, indisciplinada e com falta de força de vontade’ são termos geralmente relatados por aqueles que sofrem com compulsão alimentar, episódios em que há a ingestão de uma grande quantidade de comida, em um período de tempo muito curto, acompanhada de uma sensação de perda de controle. São termos que descrevem o sofrimento que estas pessoas vivem, mas que revelam como as compulsões alimentares estão cercadas de mitos e preconceitos. Precisamos, então, rever algumas questões:

  1. Compulsões alimentares não são uma questão de falta de controle.

Você não é uma pessoa descontrolada porque vive com compulsões alimentares, e não canso de repetir isso. Compulsões alimentares não são episódios de descontrole seu, mas uma condição que necessita de atenção.

Como coloca a autora Geneen Roth, com uma analogia muito interessante, as compulsões alimentares são como um gesso. O gesso pinica, dói, incomoda, atrapalha sua vida, mas tem um propósito: de apoiar, confortar, tratar temporariamente, anestesiar. Você pode tentar arrancar seu gesso, mas enquanto tiver uma perna quebrada, você não conseguirá se manter longe do gesso. Da mesma forma, você pode tentar “resistir para não comer”, mas enquanto houver os gatilhos para a compulsão alimentar (suas “pernas quebradas”), ela continuará perpetuando.

Então, você não é uma pessoa descontrolada, sem força de vontade. Você vive com uma condição que está de alguma forma te anestesiando, te confortando, te trazendo uma “solução temporária” para um problema maior. É uma anestesia, um aviso do nosso corpo de que precisamos tratar nossa perna quebrada.

  1. Seria o controle uma causa do descontrole?

As dietas restritivas ou proibitivas, ou seja, eu restringir calorias, nutrientes ou alimentos, estão constantemente associadas aos episódios compulsivos.

Nosso organismo não tolera ser privado de alimento, e reage aumentando nosso desejo pelo alimento proibido, e, inclusive, desenvolvendo alterações metabólicas que aumentam nossa fome e nosso desejo de carboidratos.

Assim, entramos em uma situação cíclica: por estarmos com o desejo aumentado pelos alimentos proibidos, em algum momento acabamos comendo tal alimento; por comermos algo que não devíamos, nos sentimos culpados; acionamos o pensamento “só hoje” para aliviar a culpa, e geralmente também o “já que eu já comi isso, vou comer isso, isso e isso, e amanhã recomeço”, que estão ligados ao desenvolvimento da compulsão alimentar; e, então, no dia seguinte, recomeçamos a dieta e recomeçamos assim esse ciclo. Esses pensamentos fazem parte do descrito por Bernardi (et al, 2005) como “desinibição do controle cognitivo”, demonstrando como o fato de controlarmos muito nossa alimentação poderia ser o que acionaria esses momentos de “descontrole”.

E olha só que interessante: estudos populacionais no Brasil têm mostrado que 15 a 20% dos pacientes que procuram tratamento para compulsão alimentar sofrem, na verdade, com compulsões alimentares (Azevedo, Santos e Fonseca, 2004), e que cerca de 30% a 40% dos obesos que procuram tratamento para emagrecer poderiam ser diagnosticados com Transtorno de Compulsão Alimentar (Duschene et al, 2007). E sabe qual é a metodologia que a maioria dos programas de emagrecimento utiliza? Restrição e proibição alimentar! Estamos contribuindo para a saúde destes pacientes, ou para a piora deste quadro?

  1. Alimentação saudável é questão de controle?

Nós, como sociedade, enxergamos as compulsões alimentares como uma questão de falta de força de vontade por termos uma visão equivocada do que é ter uma alimentação saudável. Desde criança, aprendemos que comer bem é questão de disciplina, que precisamos ter força de vontade para comer direito, que precisamos ter foco, força e fé para controlar o que comemos. Aprendemos que ser saudável é ser disciplinado. Assim, quando vivemos um episódio de comer compulsivo, sentimos que não tivemos disciplina o suficiente para “resistir”, nem foco para nos mantermos na linha. Sentimos que fracassamos mais uma vez.

E por isso eu sempre digo que a compulsão alimentar dói “lá na alma”. Ela machuca lá no fundo. E ela dói lá dentro justamente porque viver esses episódios mexe com nosso conjunto de valores. Por termos uma interpretação de que comer é questão de disciplina, então se não “conseguimos nos manter na linha” logo somos pessoas sem controle, indisciplinadas. Isso é bem profundo, não é mesmo? E também é incorreto!

Comer é um ato natural, de nutrição e respeito ao corpo, que traz vida e força para o nosso organismo. Por que precisaríamos ter tanta força de vontade para executar um ato tão bonito e prazeroso?  Segundo a Alimentação Intuitiva (Tribole e Resch, 2012), nosso organismo tem a capacidade de guiar nossa alimentação. Baseando-se nas minhas necessidades nutricionais e nos hábitos alimentares que aprendi com minha família e com minha cultura, ele me manda sinais como fome, saciedade e apetite para me dizer quando, quanto e o que comer. Temos uma série de hormônios e neurotransmissores que guiam todo o nosso processo do comer (por exemplo, o hormônio da grelina liberado quando o estômago está ficando vazio para nos avisar que estamos precisando de comida; ou também o hormônio GLP-1 liberado no intestino que nos mostra que estamos ficando saciados). Onde entra a disciplina aqui?

Assim, acredito fielmente que alimentação saudável não tem nada a ver com disciplina. E talvez seja toda essa disciplina que temos tentado exercer hoje uma das responsáveis pelo crescimento da compulsão alimentar na população.

 


Fontes:

AZEVEDO, SANTOS E FONSECA, Rev Psiquiatr Clin. 31(4):170-172, 2004.

BERNARDI F, et al. Comportamento de restrição alimentar e obesidade. Rev. Nutr., Campinas, 18(1):85-93, jan./fev., 2005

DUCHESNE, M. et al. Evidências Sobre a Terapia Cognitivo-Comportamental no Tratamento de obesos com Transtorno da Compulsão Alimentar Periódica. Revista Brasileira de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 29(1), 2007

 


Nathália Petry

Nutricionista Comportamental e ativista em Alimentação Intuitiva; Graduada em Nutrição pela Universidade Federal de Santa Catarina, Coach de Meditação Mindfulness pelo Instituto Nutrição Meditação e Consciência, Professional Coach pelo Instituto Brasileiro de Coaching (IBC), e tem experiência nacional e internacional na área de Transtornos Alimentares (National Eating Disorders Association). Atua na área comportamental da Nutrição, e seu trabalho é ajudar pessoas que sofrem com a comida e com o peso (efeito sanfona, dietas frustradas, culpa ao comer, sensação de descontrole perante a comida, compulsão alimentar, transtorno alimentar) a transformarem seu relacionamento com os alimentos e resgatarem sua autonomia alimentar. É também fundadora do Instituto de Alimentação Consciente e Intuitiva (IACI), pelo qual ministra cursos para profissionais; e idealizadora do projeto De bem com meu prato, um projeto de conteúdo online que visa à promoção de informação à população.

Site: www.nathaliapetrynutricionista.com

Facebook: /debemcommeuprato

Instagram: @debemcommeuprato

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