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Você é o que você come?

Vamos ser honestos: Quem nunca sentiu culpa após comer alguma comida considerada gordurosa? Ou então ficou orgulhoso por ter escolhido uma fruta ao invés de um doce? Por que, então, o contrário não acontece, e por que dividimos os alimentos assim? Estamos acostumados a considerar alguns alimentos como prejudiciais, e outros como benéficos ao nosso organismo, mas, na verdade, não é tão simples assim. A nutricionista Nathalia Petry (Graduada em Nutrição pela Universidade Federal de Santa Catarina) nos mostra, abaixo, que a relação dos alimentos com nosso corpo e mente é muito mais complexa do que pode parecer.


Você é o que você come? Saiba como esta visão pode estar prejudicando seu relacionamento com a comida

Comer olho de tigre para ter uma melhor visão, pata de urso para ser mais forte, ossos de vacas velhas para viver mais anos… parece loucura, certo?

Bom, “você é o que você come”, certo? Esta é uma frase que escutamos muito, mas acredito que não paramos para refletir sobre o que realmente é ser o que você come, e isso tem um grande impacto nas nossas escolhas e no nosso comportamento alimentar. Segundo o autor Alan Levinovitz, “você é o que você come” é um pensamento que deriva de uma superstição antiga e praticamente universal de que poderíamos absorver as qualidades físicas – e morais – de um alimento, como, por exemplo, comer pata de urso para aumentar sua força.

E quando pensamos nessas práticas podemos achar que nós não estamos mais sob influência de pensamentos desse tipo. Mas reflita: Quantas vezes você já ingeriu algum alimento gorduroso e acreditou que aquela gordura estava toda se depositando no seu abdome? Quantas vezes, você já se pegou pensando que se você comer gordura, você ficará gordo? E que se você comer carne magra, ficará magro? Quantas vezes já passou à sua mente que uma pessoa magra só come coisas magras, e que uma pessoa gorda só come coisas gordas? Quantas vezes, você já nomeou algum alimento como “engordativo” pelo seu teor de gordura? Quando falamos em comer olho de tigre para melhorar a visão, até nos parece absurdo. Mas quando pensamos em comer menos gordura para sermos menos gordos, parece fazer sentido, certo?

Agora, vamos pensar analiticamente: será mesmo que uma pessoa magra não come alimentos gordurosos? E que uma pessoa gorda não come também frutas, saladas e carnes magras? Pois é! A verdade é que podemos e fomos feitos para comer de tudo, afinal, somos uma das pouquíssimas espécies onívoras. Além disso, os nutrientes não irão se depositar desta forma no seu corpo. Quando comemos gordura, proteínas e carboidratos, estes nutrientes irão se quebrar em pedaços menores já dentro do nosso trato gastrointestinal, para conseguirem ser absorvidos, e já na nossa corrente sanguínea serão encaminhados para os locais de maior demanda. Quer dizer, a gordura que você está ingerindo não vai necessariamente se depositar imediatamente nos seus reservatórios! Você sabia que precisamos de gordura saturada para revestir os nossos neurônios? Assim como as membranas de todas as nossas células? Você sabia que a glicose (açúcar) é o combustível preferencial e exclusivo do nosso cérebro e é a fonte de energia primária do seu organismo?

Talvez agora parando para pensar de forma analítica, você concorde que o açúcar e a gordura têm funções importantes no seu corpo, e não são necessariamente a causa da obesidade como costumamos pensar. Pensando com análise e crítica, conseguimos perceber como o “você é o que você come” não faz sentido: uma pessoa magra não comerá apenas coisas magras, afinal ela também precisa de gordura para seu organismo funcionar. No outro sentido, o mesmo ocorre: uma pessoa gorda pode se alimentar muito bem, de tudo.

Porém, sem trazer essa análise crítica, o “você é o que você come” vive em nossa mente e influencia nossa perspectiva e nossas escolhas. Um estudo muito interessante, realizado pelo psicólogo Michael Oakes, ilustra bem isto. Ele descobriu que um único Snickers miniatura (bombom feito de chocolate e amendoim), de cerca de 47 calorias, foi percebido como um agente que promovia mais aumento de peso do que um bufê de 569 calorias de queijo cottage, cenouras e peras. Você também pensa assim? O autor observou que a percepção errônea foi mediada basicamente pelo teor de gordura (MICHAELS, 2005). Afinal, quando mais gordura há, mais gordura se formará no meu corpo, certo? Não! Esse é o pensamento mágico “você é o que você come” agindo mais uma vez. Percebe agora como ele é bastante forte?

E quais são as consequências desse tipo de pensamento?

  • Você é O QUE você come: terrorismo nutricional e um relacionamento ruim com a comida

Tendo em mente este tipo de pensamento, passamos a ter medo, vergonha ou culpa ao comer uma série de alimentos. Por exemplo, passamos a ter medo de comer alimentos mais “gordurosos” porque eles poderão nos engordar, ou “junk food” porque, como o nome diz, nos intoxicará. Passamos a perseguir uma alimentação limpa (“clean eating”), magra e fit, pois ao os comermos nos sentimos limpos, magros e fit. Não é mesmo? O grande problema é que nosso cérebro não funciona dessa forma, e parece que quanto mais julgamos e proibimos um alimento que gostamos, mas temos obsessão por ele. O estudo de Erskine observou que quanto mais os indivíduos tentavam não pensar em sobre chocolate, maiores eram seus desejos por ele, e também o consumo. Segundo este autor, quanto mais proibimos um alimento do nosso cotidiano e mais tentamos não pensar nele, mais temos desejo por ele e mais o comemos.

Além disso, segundo Bernardi e colaboradores (2005), pessoas que fazem proibições alimentares, ao comer o alimento proibido, acionam o pensamento “já que eu já comi tal alimento, vou comer mais tal, tal e tal…”, assim como o pensamento “só hoje”, e assim acabam comendo muito nestes momentos. O autor ainda demonstra que, ao final do estudo, as pessoas que viviam com proibições alimentares comeram maior quantidade de comida do que as pessoas que, em primeiro lugar, comiam sem seguir regras de pode/não pode. E isto poderia estar ligado ao aumento de ganho de peso da população.

  • VOCÊ é o que você come: culpabilização do indivíduo e a questão da força de vontade

Em um estudo realizado nos Estados Unidos com 620 clínicos gerais (FOSTER et al, 2003), um terço destes sentia que seus pacientes obesos tinham “pouca força de vontade”. Ou seja, eles culpam estes indivíduos por estarem obesos, e, de certa forma, por comerem alimentos que os tornariam obesos. Estes médicos focaram no “você” do “você é o que você come”. Quer dizer, se você está gordo, é você não tem força de vontade e come alimentos que te deixam gordo. Não é mesmo? Mas aí fica a pergunta que ninguém se faz, mas que sinceramente todos deveriam se fazer: seria o sobrepeso e a obesidade um problema de falta de disciplina e força de vontade de 39-52% da população mundial adulta (WHO, 2014)? Ou será que estamos lidando com um sintoma de algo muito maior?

Muitos autores, como Chaput, têm pintado a obesidade como um reflexo, um sintoma de mudanças importantes da nossa sociedade. Segundo este autor, a obesidade talvez não seja uma doença, ou um reflexo de uma população que não tem força de vontade, mas o ganho de peso poderia ser uma adaptação biológica a um estilo de vida atual composto de privação de sono, muitos fatores estressantes (somos uma população bastante estressada e desmotivada, e é perceptível isso quando vemos os dados do aumento da ansiedade e da depressão), excesso de tecnologia e abundância de comida. Outros autores ainda, como Mann e colaboradores (2007), trazem que a própria prática de dietas restritivas e proibitivas, poderia estar levando ao ganho da população, devido às alterações bioquímicas e comportamentais que elas promovem. Outro estudo interessante, de Pietilainen e colaboradores (2011), com 2000 pares de gêmeos idênticos, conclui que as dietas podem ser, em parte, responsáveis pela atual epidemia de obesidade. Precisamos considerar ainda que cerca de 30% a 40% dos obesos que procuram tratamento para emagrecer poderiam ser diagnosticados com Transtorno de Compulsão Alimentar (TCA), um transtorno alimentar caracterizado por episódios de compulsão alimentar, nos quais há a ingestão de grande quantidade de alimento, acompanhado de sensação de descontrole. (DUSCHENE et al, 2007).

Dessa forma, conforme as reflexões levantadas acima, é bastante perceptível que o “você é o que você come” não só não compreende a complexidade da obesidade, como pode estar agravando este quadro, por incentivar a prática de dietas restritivas, e por aumentar o risco do terrorismo nutricional, de um relacionamento conturbado com a comida e do desenvolvimento de compulsão alimentar. Ou seja, “você é o que você come” realmente não parece ser uma solução. Parece contribuir para o problema.

Talvez possamos começar a entender melhor a obesidade quando começarmos ampliar os nossos questionamentos acerca dos motivos que estão nos levando ao ganho de peso. “Como você come?”, “por que você come?”, “você tem fome do quê?”, “o que os alimentos significam para você?”, “como você lida com a comida?” podem ser melhores perguntas para começar a se fazer esse caminho.


Fontes:

BERNARDI F, et al. Comportamento de restrição alimentar e obesidade. Rev. Nutr., Campinas, 18(1):85-93, jan./fev., 2005

CHAPUT JP, et al. Obesidade: uma doença ou adaptação biológica? Uma atualização. Obes Rev., 13(8), 2012.

DUCHESNE, M. et al. Evidências Sobre a Terapia Cognitivo-Comportamental no Tratamento de obesos com Transtorno da Compulsão Alimentar Periódica. Revista Brasileira de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 29(1), 2007.

ERSKINE J, GEORGIOU G. Effects of thought suppression on eating behaviour in restrained and non-restrained eaters. Appetite 54 (2010) 499–503.

FOSTER GD, et al. Primary Care Physicians’ Attitudes about Obesity and its Treatment. Obesity Research, 11(10), 2003.

FOXCROFT, L. A Tirania das Dietas. São Paulo: Três Estrelas, 2013.

LEVINOVITZ, A. A Mentira do Glúten e outros mitos sobre o que você come. Porto Alegre: CDG, 2015

MANN et al. Medicare’s Search for Effective Obesity Treatments: Diets Are Not the Answer. American Psychologist, 62(3), 2007.

MICHAEL EO, Stereotypical thinking about foods and perceived capacity to promote weight gain. Appetite 44(3), 2005.

PIETILAINEN et al. Does dieting make you fat? A twin study. International journal of obesity. 36(3):456-64. 2011

SOETENS B, et al. Suppression in Obese and Non-Obese Restrained Eaters: Piece of Cake or Forbidden Fruit? Eur. Eat. Disorders Rev., 16, 2008.

WHO (World Health Organization), 2014: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs311/en/


Nathália Petry

Nutricionista Comportamental e ativista em Alimentação Intuitiva; Graduada em Nutrição pela Universidade Federal de Santa Catarina, Coach de Meditação Mindfulness pelo Instituto Nutrição Meditação e Consciência, Professional Coach pelo Instituto Brasileiro de Coaching (IBC), e tem experiência nacional e internacional na área de Transtornos Alimentares (National Eating Disorders Association). Atua na área comportamental da Nutrição, e seu trabalho é ajudar pessoas que sofrem com a comida e com o peso (efeito sanfona, dietas frustradas, culpa ao comer, sensação de descontrole perante a comida, compulsão alimentar, transtorno alimentar) a transformarem seu relacionamento com os alimentos e resgatarem sua autonomia alimentar. É também fundadora do Instituto de Alimentação Consciente e Intuitiva (IACI), pelo qual ministra cursos para profissionais; e idealizadora do projeto De bem com meu prato, um projeto de conteúdo online que visa à promoção de informação à população.

Site: www.nathaliapetrynutricionista.com

Facebook: /debemcommeuprato

Instagram: @debemcommeuprato

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